Entrevista SPDMov à Professsora Doutora Cristina Sampaio, Professora de Farmacologia Clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL)
Como e quando surgiu o seu interesse pela ciência e a medicina?
Provenho de uma família repleta de médicos e engenheiros; assim, conversar sobre ciência e tecnologia sempre foi algo natural. No liceu, tive a sorte de frequentar aulas práticas incríveis de química, física e biologia, ministradas por professores excelentes. Creio que este ambiente de aprendizagem, aliado ao meu genuíno interesse por matemática e física, conduziu-me à escolha da ciência como área de estudos. Antes de optar pela Medicina, ponderei seguir Física Teórica, mas acabei por concluir que a Medicina oferecia uma maior diversidade de desafios e oportunidades. O Professor David Ferreira, um ilustre mestre da FMUL e notável pedagogo, foi absolutamente determinante na formação da minha carreira. Ao abrir as portas do Instituto Gulbenkian de Ciência no meu primeiro ano, revelou-me o que era o mundo da ciência internacional: rigor na conceção e metodologia, publicações de impacto e amizades pelo mundo fora. Jamais me arrependi de ter escolhido Medicina; pelo contrário, continuo feliz e grata pelo que ela me tem proporcionado. Almejo ter retribuído e continuar a fazê-lo.
As suas principais áreas de interesse são o desenho e a metodologia de estudos clínicos em doenças neurodegenerativas e farmacoepidemiologia. Porquê?
Existem decisões que estão relacionadas com circunstâncias e outras que são estratégicas. As doenças neurodegenerativas tornaram-se um interesse circunstancial. No quinto ano do curso de Medicina, apaixonei-me pelas Neurociências clínicas, o Professor Castro Caldas convidou-me para participar nos projetos de investigação em curso, oferecendo-me a opção entre Neurologia do Comportamento ou Doença de Parkinson. Optei pela Doença de Parkinson, porque me pareceu ser um tópico mais tangível, e desde então, imergi no estudo das doenças neurodegenerativas. Por outro lado, o interesse e empenho na metodologia dos estudos clínicos revelaram-se uma escolha estratégica. O treino em ciência básica, proporcionado pelo Professor David Ferreira, incutiu em mim a importância do rigor metodológico. Nos estudos clínicos, as barreiras para implementar o mesmo nível de rigor são maiores, uma vez que estudamos seres humanos no seu ambiente — quase o oposto do laboratório, onde as condições são bastante controladas. Surgiu, então, este desafio de trazer rigor à investigação clínica em doenças neurodegenerativas, bem como a necessidade. No final dos anos 80, poucos grupos se interessavam pela metodologia. Trabalhar em Portugal, com recursos e visibilidade limitados, fez com que optar pela metodologia como enfoque fosse uma jogada estratégica. Essa decisão catapultou o nosso grupo e conquistou reconhecimento internacional. É um legado de que me orgulho, e que o Professor Joaquim Ferreira, meu grande amigo, tem elevado a uma maior dimensão. Em retrospetiva, ambas as escolhas foram extremamente gratificantes e mantêm a minha curiosidade e intelecto sobejamente ativos ao longo dos anos.
Tem apresentado diversas ideias para o combate à Doença de Huntington. Quer fazer-nos um resumo do que tem sido feito e o que falta fazer?
A doença de Huntington é uma doença neurodegenerativa de herança autossómica dominante, que representa uma maldição e uma oportunidade. A doença é silenciosa até à 4ª ou 5ª década de vida, e quando os sintomas surgem, a progressão é lenta, mas implacável. A oportunidade reside na possibilidade de diagnosticar com precisão quem está afetado ou não, décadas antes das manifestações clínicas, algo que não existe em outras doenças como Parkinson ou Alzheimer. Estudos de coorte, como a plataforma Enroll-HD, têm contribuído para a caracterização da doença e para a validação de instrumentos de medição e biomarcadores. O avanço tecnológico possibilitou o desenvolvimento de terapias baseadas no RNA e de terapia genética, abrindo novas oportunidades de tratamento. Entretanto, as funções da proteína huntingtina ainda não são totalmente esclarecidas, e a informação gerada pelos métodos de estudo de células únicas é colossal e tem o potencial de modificar o que se pensava ser conhecimento definitivo. Um exemplo é a mutação do gene Htt, que consiste numa expansão do tripleto CAG; o tamanho da expansão era considerado fixo, mas descobriu-se que aumenta com o tempo e varia conforme o tipo celular. Na investigação clínica, é crucial acompanhar esta explosão de conhecimento e traduzi-lo na forma como se planeiam e avaliam resultados em ensaios clínicos. A minha equipa na CHDI tem-se empenhado no desenvolvimento de instrumentos que facilitem ensaios clínicos mais bem-sucedidos, investindo no estudo de biomarcadores e na aplicação de métodos de inteligência artificial, permitindo prever trajetórias dos participantes em estudos clínicos e facilitar a deteção do risco e do benefício das intervenções.
Em 2009 por sua iniciativa conjuntamente com os colegas Maria José Rosas, Miguel Coelho e João Massano criaram a SPDMov. Como surgiu a ideia? Quais foram as principais estímulos ao criar uma sociedade nesta altura?
Foi uma questão de alcançar a maturidade. A Secção de Doenças do Movimento da Sociedade Portuguesa de Neurologia (SPN), que precedeu a SPDMOV, já existia há varias décadas e representava um fórum importante para debates e iniciativas científicas colaborativas e multicêntricas. Os colegas mais experientes da época recordavam-se de quando havia apenas meia dúzia de membros e as reuniões consistiam em conversas entre amigos e um jantar animado. No entanto, em 2009, a secção já tinha uma vida organizada, o número de membros havia crescido para mais de uma centena e a logística das reuniões exigia profissionalismo. Sendo uma secção da SPN, toda a gestão das atividades tinha de ser feita pelos órgãos gerentes da SPN, incluindo a manutenção de contas bancárias e, obviamente, o pagamento a fornecedores, etc. Essa dependência impedia o crescimento necessário, especialmente porque a SPN já tinha várias outras secções para gerir. O estímulo para criar a SPDMOV surgiu, portanto, do desejo de crescer e conquistar autonomia, tal como acontece com qualquer jovem adulto.
Ente 1998 e 2011 foi membro do Comité de Especialidades Farmacêuticas e do Conselho Científico do Grupo de Trabalho da Agência Europeia do Medicamento (EMA). Que foi esta experiência?
Em 1998, tive o meu primeiro contacto com o Comité dos Medicamentos Humanos, também conhecido como CHMP, e ao longo de 13 anos, maioritariamente como membro do CHMP e do “Scientific Advise Working Party”, vivi a experiência profissional mais emocionante e exigente da minha vida. Na altura, a equipa portuguesa era reduzida, constituída essencialmente por académicos que acumulavam funções na EMA com trabalhos a tempo inteiro nas universidades. A avaliação dos novos medicamentos, em que estivemos diretamente envolvidos e que totalizaram algumas dezenas, exigia um trabalho rigoroso, altamente especializado e realizado contra o relógio. Tive o privilégio de estar envolvida na aprovação de tecnologias inovadoras e novas metodologias de tratamento para diversas doenças que afligem a humanidade. Simbolicamente (o produto chamava-se Glybera e foi retirado do mercado por falta de interesse comercial), destaca-se a aprovação da primeira terapia genética de administração sistémica durante esse período. O nosso papel não foi fácil, pois tínhamos de avaliar e decidir o que poderia ser autorizado a entrar no mercado europeu, uma decisão com enormes repercussões na saúde pública e na economia. As nossas decisões levaram várias empresas à falência, enquanto uma decisão positiva impulsionava as bolsas de valores. Simultaneamente, o nosso trabalho criava oportunidades de acesso a medicamentos para milhares de pessoas. Com a nossa pequena equipa, conseguimos trabalhar a um nível tão elevado que Portugal era visto como referência, mesmo quando comparado a países maiores e com mais recursos humanos qualificados, como a Alemanha, França ou o Reino Unido. Os anos passados no CHMP-EMA proporcionaram-me uma formação ímpar em temas científicos altamente especializados e também, por arrasto, em política internacional! Foi uma época inesquecível, onde criei amizades que remetem aos tempos escolares, como a Professora Beatriz Silva Lima, o Professor Rogério Gaspar e o Professor José Morais, além dos amigos de profissão na área regulamentar e em empresas farmacêuticas espalhados pelo mundo inteiro.
Neste período fez parte, também, da Comissão de Avaliação de Medicamentos do Infarmed. Que desafios lhe foram colocados?
A minha entrada na Comissão de Avaliação de Medicamentos (CAM) do INFARMED, durante a década de 1990, foi um momento crucial para o desenvolvimento das instituições portuguesas na área da saúde. O convite do Professor Luz Rodrigues e do Dr. Aranda da Silva tinha como objetivo renovar os procedimentos de avaliação dos medicamentos em Portugal, numa altura em que os padrões estavam a tornar-se cada vez mais exigentes. A criação da Agência Europeia do Medicamento (EMA, na época chamada de EMEA e sediada em Londres) reduziu o protagonismo e a influência das agências regulamentares nacionais, uma vez que a grande maioria dos medicamentos inovadores passou a ser avaliada no processo centralizado da EMA. Este cenário exigiu mudanças e evolução nas instituições portuguesas, e foi neste contexto que se deu a minha entrada para a CAM . Inicialmente, houve uma grande resistência à mudança na CAM, mas nunca desisti de lutar pelo desenvolvimento dos procedimentos de avaliação dos medicamentos em Portugal. Acredito que fui uma das pessoas que mais impulsionou essa mudança, que foi gradualmente concretizada. Fui rebelde e frontal, mas tive o apoio fundamental do Dr. Aranda da Silva e de vários colegas que se dedicaram a este processo. Hoje, sinto um enorme orgulho em ter feito parte deste motor de viragem na realidade portuguesa. A minha entrada na CAM foi uma grande oportunidade para deixar a minha marca na área da saúde em Portugal, impulsionando um novo caminho para a avaliação de medicamentos. Foi um desafio enriquecedor, que recordo com carinho e gratidão.
Sendo portuguesa e aceitar o cargo em 2011 de Chief Medical Officer na (CHDI) Foundation da organização norte-americana, o que pensou quando assumiu esta enorme responsabilidade?
Ah, ótima pergunta! Não tenho certeza se pensei que seria uma responsabilidade maior do que a que tive na EMA ou mesmo ao assumir a direção do laboratório de Farmacologia Clínica da FMUL, que, aliás, já dirigia por delegação do Prof. Virgílio Durão, um dos meus mentores mais queridos. Concordo com Amelia Earhart, grande pioneira da aviação, que disse: “o mais difícil é a decisão de agir”. De fato, a decisão de aceitar a proposta do presidente do CHDI, Robi Bluemstein, foi a parte mais difícil. Aceitei a responsabilidade com naturalidade e com a emoção de enfrentar um novo desafio. No entanto, havia aspetos inéditos, como a saída do espaço europeu, onde sempre me movimentei bem; os Estados Unidos são uma realidade bastante diferente. Quando estamos distantes, temos tendência para idolatrar os grandes laboratórios, os hospitais magníficos e os grandes meios financeiros. No entanto, no dia a dia, essas virtudes esbatem-se, e a enorme desigualdade e violência da sociedade americana tornam-se bastante aparentes. De certa forma, é como se a realidade americana não fosse tão brilhante quanto imaginávamos de longe, mas sim um conjunto complexo de contrastes e desafios, que me tem ensinado muito e me mostrado uma outra faceta do mundo da investigação científica. Aceitar a posição na CHDI Foundation foi um salto no desconhecido, mas tem-se revelado extremamente compensador. Quando cheguei à Fundação, havia um departamento clínico embrionário. O que fiz foi definir uma estratégia consentânea com a missão da Fundação, que visa facilitar o desenvolvimento de terapias capazes de influenciar de forma relevante o curso da doença de Huntington. A Fundação pretende ter uma função facilitadora e um efeito multiplicador. Nesse sentido, apesar de existirem programas internos dedicados à descoberta de novos medicamentos, o nosso principal foco é desenvolver métodos e tecnologias que possam ser usados transversalmente pelas várias empresas com programas dedicados ao desenvolvimento de medicamentos para a doença de Huntington. Geralmente, empresas farmacêuticas não têm tempo ou recursos para conduzir estudos clínicos preparatórios, que podem demorar anos. A CHDI dedica-se a antecipar e suprir essas necessidades futuras, garantindo que as empresas tenham biomarcadores, instrumentos de medida e capacidade de recrutamento sempre que desenvolverem novos medicamentos. O departamento clínico da CHDI, que ajudei expandir a partir do projecto embrionario que recebi, possui agora cinco unidades de investigacao (Neuroimagem, “Wetbiomarkers”, Métodos de avaliação clínica, Modelos e estatística, e ciência regulamentar) e a plataforma Enroll-HD, que desempenha um papel crucial no suporte a ensaios clínicos em escala global.
Qual a importância da CHDI Foundation no panorama internacional?
A CHDI Foundation é, há cerca de duas décadas, o principal pilar da investigação científica nas vertentes translacional e clínica na área da doença de Huntington. Praticamente não há projetos ou centros de investigação focados na doença de Huntington que não mantenham alguma relação com a CHDI. A instituição tornou-se uma referência incontornável para todas as empresas que pretendem desenvolver medicamentos para a doença de Huntington. Na última década, as empresas farmacêuticas passaram a ver as doenças raras como uma área de grande interesse. A maioria dessas doenças tem uma causa genética, hoje em dia relativamente fácil de identificar. Em contraste, doenças de grande prevalência – Alzheimer, Parkinson, esquizofrenia, depressão, entre outras do sistema nervoso central – são muito complexas. Empresas que desenvolvem plataformas, como a síntese de oligonucleótidos antisentido, podem focar-se em várias doenças em sucessão. A doença de Huntington, sendo rara, mas não muito, e com uma sólida base de conhecimento biológico em parte gerada pelos esforços das equipas e da CHDI, é um alvo atraente para várias empresas. A presença da CHDI, apoiando o desenvolvimento dos medicamentos propostos com know-how e infraestrutura (muito raramente com dinheiro), é um fator muitas vezes decisivo para as empresas avançarem com um programa em detrimento de outras doenças com menos apoios. A questão sobre o impacto do CHDI no plano internacional leva-nos também à atividade filantrópica nas áreas científicas. Tive a grande oportunidade da minha carreira no Instituto Gulbenkian de Ciência, e estou eternamente grata à Fundação Gulbenkian por criar e suportado aquele templo da cultura científica. Falar de filantropia é complexo e não pode ser feito em poucas linhas. A filantropia científica só arrancou para o crescimento que tem hoje nos anos 90 do século XX, enquanto a filantropia para as artes e humanidades tem antecedentes muito mais antigos. Em particular, a filantropia focada em fazer progredir a ciência aplicada a doenças específicas, normalmente raras, é um fenómeno do século XXI. A CHDI Foundation foi fundada em 2002 (com o nome de Fundação High Q) e foi pioneira numa forma inovadora de organização. A CHDI realiza investigação científica própria com múltiplas colaborações externas, mas não atribui bolsas ou financiamentos na forma de “grants”. O que a CHDI Foundation faz, e posteriormente a Gates Foundation adotou um modelo semelhante, é estabelecer contratos de colaboração com universidades, empresas e outros parceiros.
O que gosta de fazer nos seus tempos livres?
Nesta fase da vida, tenho o privilégio de possuir amigos espalhados por todo o mundo. Não há maior prazer do que compartilhar momentos com esses amigos e rever a família. Prazeres que não dispenso: viajar por lazer e descontração, em contraste com as viagens de trabalho, correndo entre aeroportos e salas de reunião; ler um livro vorazmente e outro em pequenas doses; descobrir novos e antigos recantos gastronómicos.
SPDMov, 5 de abril de 2023